quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O Sentido da colonização


O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO
Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo. Quem observa aquele conjunto, desbastando-o do cipoal de incidentes secundários que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível, não deixará de perceber que ele se forma de uma linha mestra ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação. É isso que se deve, antes de mais nada, procurar quando se aborda a análise da história de um povo, seja aliás qual for o momento ou o aspecto dela que interessa, porque todos os momentos e aspectos não são senão partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo último do historiador, por mais particularista que seja. Tal indagação é tanto mais importante e essencial que é por ela que se define, tanto no tempo como no espaço, a individualidade da parcela de humanidade que interessa ao pesquisador: povo, país, nação, sociedade, seja qual for a designação apropriada no caso. É somente aí que ele encontrará aquela unidade que lhe permite destacar uma tal parcela humana para estudá-la à parte. 

O sentido da evolução de um povo pode variar; acontecimentos estranhos a ele, transformações internas profundas do seu equilíbrio ou estrutura, ou mesmo ambas essas circunstâncias conjuntamente, poderão intervir, desviando-o para outras vias até então ignoradas. Portugal nos traz disso um exemplo frisante que para nós é quase doméstico. Até fins do século xiv, e desde a constituição da monarquia, a história portuguesa se define pela formação de uma nova nação europeia e articula-se na evolução geral da civilização do Ocidente de que faz parte, no plano da luta que teve de sustentar, para se constituir, contra a invasão árabe que ameaçou num certo momento todo o continente e sua civilização. No alvorecer do século xv, a história portuguesa muda de rumo. Integrado nas fronteiras geográficas naturais que seriam definitivamente as suas, constituído territorialmente o reino, Portugal se vai transformar num país marítimo; desliga-se, por assim dizer, do continente, e volta-se para o oceano que se abria para o outro lado; não tardará, com suas empresas e conquistas no ultramar, em se tornar uma grande potência colonial. 
Vista deste ângulo geral e amplo, a evolução de um povo se torna explicável. Os pormenores e incidentes mais ou menos complexos, que constituem a trama de sua história e que ameaçam por vezes nublar o que verdadeiramente forma a linha mestra que a define, passam para o segundo plano; e só então nos é dado alcançar o sentido daquela evolução, compreendê-la, explicá-la. É isso que precisamos começar por fazer com relação ao Brasil. Não nos interessa aqui, é certo, o conjunto da história brasileira, pois partimos de um momento preciso, já muito adiantado dela, e que é o final do período de colônia. Mas esse momento, embora o possamos circunscrever com relativa precisão, não é senão um elo da mesma cadeia que nos traz desde o nosso mais remoto passado. Não sofremos nenhuma descontinuidade no correr da história da colônia. E se escolhi um momento dela, apenas a sua última página, foi tão somente porque, já me expliquei na Introdução, aquele momento se apresenta como um termo final e a resultante de toda nossa evolução anterior. A sua síntese. Não se compreende, por isso, se desprezarmos inteiramente aquela evolução, o que nela houve de fundamental e permanente. Numa palavra, o seu sentido.
 Isso nos leva, infelizmente, para um passado relativamente longínquo e que não interessa diretamente ao nosso assunto. Não podemos contudo dispensá-lo, e precisamos reconstituir o conjunto da nossa formação colocando-a no amplo quadro, com seus antecedentes, desses três séculos de atividade colonizadora que caracterizam a história dos países europeus a partir do século xv; atividade que integrou um novo continente na sua órbita, paralelamente aliás ao que se realizava, embora em moldes diversos, em outros continentes: a África e a Ásia. Processo que acabaria por integrar o Universo todo em uma nova ordem, que é a do mundo moderno, em que a Europa, ou antes, a sua civilização, se estenderia dominadora por toda parte. Todos esses acontecimentos são correlatos, e a ocupação e povoamento do território que constituiria o Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe daquele quadro imenso. 
Realmente, a colonização portuguesa na América não é um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos, paralela a outras semelhantes, mas independente delas. É apenas a parte de um todo, incompleto sem a visão desse todo. Incompleto que se disfarça muitas vezes sob noções que damos como claras e que dispensam explicações; mas que não resultam na verdade senão de hábitos viciados de pensamento. Estamos tão acostumados em nos ocupar com o fato da colonização brasileira, que a iniciativa dela, os motivos que a inspiraram e determinaram, os rumos que tomou em virtude daqueles impulsos iniciais se perdem de vista. Ela aparece como um acontecimento fatal e necessário, derivado natural e espontaneamente do simples fato do descobrimento. E os rumos que tomou também se afiguram como resultados exclusivos daquele fato. Esquecemos aí os antecedentes que se acumulam atrás de tais ocorrências, e o grande número de circunstâncias particulares que ditaram as normas a seguir. A consideração de tudo isso, no caso vertente, é tanto mais necessária que os efeitos de todas aquelas circunstâncias iniciais e remotas, do caráter que Portugal, impelido por elas, dará à sua obra colonizadora, [e que] se gravarão profunda e indelevelmente na formação e evolução do país.
A expansão marítima dos países da Europa, depois do século xv, expansão de que o descobrimento e a colonização da América constituem o capítulo que particularmente nos interessa aqui, se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países. Deriva do desenvolvimento do comércio continental europeu, que até o século xiv é quase unicamente terrestre, e limitado, por via marítima, a uma mesquinha navegação costeira e de cabotagem. Como se sabe, a grande rota comercial do mundo europeu que sai do esfacelamento do Império do Ocidente é a que liga por terra o Mediterrâneo ao mar do Norte, desde as repúblicas italianas, através dos Alpes, os cantões suíços, os grandes empórios do Reno, até o estuário do rio onde estão as cidades flamengas. No século xiv, mercê de uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar, outra rota ligará aqueles dois polos do comércio europeu: será a marítima que contorna o continente pelo estreito de Gibraltar. Rota que, subsidiária a princípio, substituirá afinal a primitiva no grande lugar que ela ocupava. O primeiro reflexo dessa transformação, a princípio imperceptível, mas que se revelará profunda e revolucionará todo o equilíbrio europeu, foi deslocar a primazia comercial dos territórios centrais do continente, por onde passava a antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada oceânica: a Holanda, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha e a península Ibérica.
Esse novo equilíbrio firma-se desde o princípio do século xv. Dele derivará não só todo um novo sistema de relações internas do continente, como, nas suas consequências mais afastadas, a expansão europeia ultramarina. O primeiro passo estava dado e a Europa deixará de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o oceano. O papel de pioneiro nessa nova etapa caberá aos portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo dessa península que avança pelo mar. Enquanto holandeses, ingleses, normandos e bretões se ocupam na via comercial recém-aberta, e que bordeja e envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vão mais longe, procurando empresas em que não encontrassem concorrentes mais antigos e já instalados, e para que contavam com vantagens geográficas apreciáveis: buscarão a costa ocidental da África, traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas. Nessa avançada pelo oceano descobrirão as ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores), e continuarão perlongando o continente negro para o sul. Tudo isso se passa ainda na primeira metade do século xv. Lá por meados dele começa a se desenhar um plano mais amplo: atingir o Oriente contornando a África. Seria abrir para seu proveito uma rota que os poria em contato direto com as opulentas Índias das preciosas especiarias, cujo comércio fazia a riqueza das repúblicas italianas e dos mouros por cujas mãos transitavam até o Mediterrâneo. Não é preciso repetir aqui o que foi o périplo africano, realizado afinal depois de tenazes e sistemáticos esforços de meio século.
Atrás dos portugueses lançam-se os espanhóis. Escolherão outra rota, pelo Ocidente em vez do Oriente. Descobrirão a América, seguidos aliás de perto pelos portugueses, que também toparão com o novo continente. Virão, depois dos países peninsulares, os franceses, ingleses, holandeses, até dinamarqueses e suecos. A grande navegação oceânica estava aberta, e todos procuravam tirar partido dela. Só ficarão atrás aqueles que dominavam no antigo sistema comercial terrestre ou mediterrâneo, e cujas rotas iam passando para o segundo plano: mal situados, geograficamente, com relação às novas rotas, e presos a um passado que ainda pesava sobre eles, serão os retardatários da nova ordem. A Alemanha e a Itália passarão para um plano secundário a par dos novos astros que se levantavam no horizonte: os países ibéricos, a Inglaterra, a França, a Holanda.
Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar dos “descobrimentos”, articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do século xv, e que lhes alargará o horizonte pelo oceano afora. Não têm outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e colonização das ilhas pelos portugueses, o roteiro das Índias, o descobrimento da América, a exploração e ocupação de seus vários setores. É esse último o capítulo que mais nos interessa aqui; mas não será, em sua essência, diferente dos outros. É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas que lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as circunstâncias do momento em que se achavam. Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravos; na Índia irão buscar especiarias. Para concorrer com eles, os espanhóis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais, procurarão outro caminho para o Oriente; a América, com que toparam nessa pesquisa, não foi para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto à realização de seus planos e que devia ser contornado. Todos os esforços se orientam então no sentido de encontrar uma passagem, cuja existência se admitiu a priori. Os espanhóis, situados nas Antilhas desde o descobrimento de Colombo, exploram a parte central do continente: descobrirão o México; Balboa avistará o Pacífico; mas a passagem não será encontrada. Procura-se então mais para o sul: as viagens de Sólis, de que resultará o descobrimento do rio da Prata, não tiveram outro objetivo. Magalhães será seu continuador e encontrará o estreito que conservou o seu nome e que constituiu afinal a famosa passagem tão procurada; mas ela se revelará pouco praticável e se desprezará. Enquanto isto se passava no sul, as pesquisas se ativam para o norte; a iniciativa cabe aí aos ingleses, embora tomassem para isso o serviço de estrangeiros, pois não contavam ainda com pilotos nacionais bastante práticos para empresas de tamanho vulto. As primeiras pesquisas serão empregadas pelos italianos João Cabôto e seu filho Sebastião. Os portugueses também figurarão nesta exploração do extremo Norte americano com os irmãos Côrte Real, que descobrirão o Labrador. Os franceses encarregarão o florentino Verazzano de iguais objetivos. Outros mais se sucedem, e embora tudo isso servisse para explorar e tornar conhecido o Novo Mundo, firmando a sua posse pelos vários países da Europa, não se encontrava a almejada passagem que hoje sabemos não existir.1 Ainda em princípios do século xvii, a Virginia Company of London incluía entre seus principais objetivos o descobrimento da brecha para o Pacífico que se esperava encontrar no continente.
Tudo isso lança muita luz sobre o espírito com que os povos da Europa abordam a América. A ideia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis. A ideia de ocupar, não como se fizera até então em terras estranhas, apenas como agentes comerciais, funcionários
e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de articulação entre as rotas marítimas e os territórios ocupados; mas ocupar com povoamento efetivo, isso só surgiu como contingência, necessidade imposta por circunstâncias novas e imprevistas. Aliás, nenhum povo da Europa estava em condições naquele momento de suportar sangrias na sua população, que no século xvi ainda não se refizera de todo das tremendas devastações da peste que assolou o continente nos dois séculos precedentes. Na falta de censos precisos, as melhores probabilidades indicam que em 1500 a população da Europa ocidental não ultrapassava a do milênio anterior.
Nessas condições, “colonização” ainda era entendida como aquilo que dantes se praticava; fala-se em colonização, mas o que o termo envolve não é mais que o estabelecimento de feitorias comerciais, como os italianos vinham de longa data praticando no Mediterrâneo, a Liga Hanseática no Báltico, mais recentemente os ingleses, holandeses e outros no extremo Norte da Europa e no Levante; como os portugueses fizeram na África e na Índia. Na América a situação se apresenta de forma inteiramente diversa: um território primitivo habitado por rala população indígena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar essas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí.
Aqui ainda, Portugal foi um pioneiro. Seus primeiros passos, neste terreno, são nas ilhas do Atlântico, postos avançados, pela identidade de condições para os fins visados, do continente americano; e isso ainda no século xv. Era preciso povoar e organizar a produção: Portugal realizou esses objetivos brilhantemente. Em todos os problemas que se propõem desde que uma nova ordem econômica se começa a desenhar aos povos da Europa, a partir do século xv, os portugueses sempre aparecem como pioneiros. Elaboram todas as soluções até seus menores detalhes. Espanhóis, depois ingleses, franceses e os demais, não fizeram outra coisa, durante muito tempo, que navegar em suas águas; mas navegaram tão bem que acabaram suplantando os iniciadores e arrebatando-lhes a maior parte, se não praticamente todas as realizações e empresas ultramarinas.
Os problemas do novo sistema de colonização, envolvendo a ocupação de territórios quase desertos e primitivos, terão feição variada, dependendo em cada caso das circunstâncias particulares com que se apresentam. A primeira delas será a natureza dos gêneros aproveitáveis que cada um daqueles territórios proporcionará. A princípio, naturalmente, ninguém cogitará de outra coisa que produtos espontâneos, extrativos. É ainda quase o antigo sistema das feitorias puramente comerciais. Serão as madeiras, de construção ou tintoriais (como o pau-brasil entre nós) na maior parte deles; também as peles de animais e a pesca no extremo Norte, como na Nova Inglaterra; a pesca será particularmente ativa nos bancos da Terra Nova, onde desde os primeiros anos do século xvi, possivelmente até antes, se reúnem ingleses, normandos, vasconcelos.* Os espanhóis serão os mais felizes: toparão desde logo nas áreas que lhes couberam,  com os metais preciosos, a prata e o ouro do México e Peru. Mas os metais, incentivo e base suficiente para o sucesso de qualquer empresa colonizadora, não ocupam na formação da América senão um lugar relativamente pequeno. Impulsionarão o estabelecimento e ocupação das colônias espanholas citadas; mais tarde, já no século xviii, intensificarão a colonização portuguesa na América do Sul e a levarão para o centro do continente. Mas é só. Os metais, que a imaginação escaldante dos primeiros exploradores pensava encontrar em qualquer território novo, esperança reforçada pelas prematuras descobertas castelhanas, não se revelaram tão disseminados como se esperava. Na maior extensão da América ficou-se a princípio exclusivamente nas madeiras, nas peles, na pesca; e a ocupação de territórios, seus progressos e flutuações, subordinam-se por muito tempo ao maior ou menor sucesso daquelas atividades. Viria depois, em substituição, uma base econômica mais estável, mais ampla: seria a agricultura.
Não é meu intuito entrar aqui nos pormenores e vicissitudes da colonização europeia na América. Mas podemos, e isso muito interessa ao nosso assunto, distinguir duas áreas diversas, além daquela onde se verificou a ocorrência de metais preciosos, em que a colonização toma rumos inteiramente diversos. São elas as que correspondem respectivamente às zonas temperada, de um lado; tropical e subtropical, do outro. A primeira, que compreende grosseiramente o território americano ao norte da baía de Delaware (a outra extremidade temperada do continente, hoje países platinos e Chile, esperará muito tempo para tomar forma e significar alguma coisa), não ofereceu realmente nada de muito interessante, e permanecerá ainda por muito tempo adstrita à exploração de produtos espontâneos: madeiras, peles, pesca. Na Nova Inglaterra, nos primeiros anos da colonização, viam-se até com maus olhos quaisquer tentativas de agricultura que desviavam das feitorias de peles e pesca as atividades dos poucos colonos presentes.2 Se se povoou essa área temperada, o que aliás só ocorreu depois do século xvii, foi por circunstâncias muito especiais. É a situação interna da Europa, em particular da Inglaterra, as suas lutas político-religiosas, que desviam para a América as atenções de populações que não se sentem à vontade e vão procurar ali abrigo e paz para suas convicções.

1. Também se tentou, a partir de meados do século xvi, a passagem para o Oriente pelas regiões árticas da Europa e Ásia. A iniciativa cabe ao mesmo Sebastião Cabôto, que já encontramos na América, e mais uma vez a serviço dos ingleses (1553).
* Bascos. (N. E.)
2. Marcus Lee Hansen, The Atlantic Migration: 1607-1860, p. 13.
Extraído de PRADO JÚNIO, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia.  São Paulo: Cia das Letras. 2011.

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